Tocando mais especificamente o drama das brasileiras residentes no exterior, há uma série de aspectos a serem considerados. Se antes havia maior frequência de pais (genitor masculino) como subtratores, atualmente, este papel se encontra reverso. De acordo com dados recentes, a maior parte das pessoas que ficam no papel de genitor subtrator (taking parent) são as mulheres, algumas por inconformidade diante da possibilidade de perder a exclusividade na guarda física das crianças, ou por serem vítimas de violência doméstica, ou por serem ameaçadas de perderem o poder familiar e, consequentemente, o acesso aos filhos; assim, agem sem orientação devida e violam a norma internacional que visa à proteção da criança e da guarda.
É comum também que ex-companheiros, inconformados com o término do vínculo afetivo, utilizem-se do mecanismo da convenção para punir e psicologicamente pressionar a ex-esposa ou ex-companheira, sendo que nunca manifestaram antes a intenção de cuidar do(s) filho(s). Trata-se da chamada vingança processual, na qual fica bastante evidente nos processos de divórcio litigioso conturbados.
Em razão da falta de conhecimento, de orientação e de estrutura financeira própria, mulheres migrantes, especialmente as brasileiras, têm deixado o seu local de residência habitual, fugindo de um lar violento, sem os devidos cuidados, para evitar ser enquadrada no âmbito da convenção.
Nesse ponto convém fazer distinção: não raro o argumento da violência doméstica é utilizado como declaração falsa, a fim de evitar o retorno imediato da criança envolvida. Por essa razão, os tribunais são muito criteriosos ao se utilizarem das exceções ao retorno imediato da criança.
Muitas das vezes, esta mulher não tem um grau de estudo que lhe permite independência financeira e/ou está desempregada ou subempregada no exterior (OLIVEIRA et. al, 2019). Ressalta-se que isso traz para a migrante um estado de dependência de seu esposo ou companheiro. Some-se a isto o fato de muitas não serem fluentes no idioma do local em que foram residir, o que intensifica uma possível xenofobia local ou uma falta de rede de apoio para a mulher vítima de violência.
Mulheres estas que podem estar em um lar violento, sofrendo violência física e psicológica e, no exterior, estão sujeitas a todos os efeitos e dificuldades de tentar denunciar o fato e de sair do lar agressor com vida. Um percentual significativo destas mulheres não têm ensino superior, dependem economicamente do companheiro e não são fluentes no idioma do local em que estão residindo. Costuma, também, serem isoladas socialmente pelo agressor, podendo dificultar ainda mais que peçam ajuda.
A legislação de proteção da mulher vem crescendo e tomando robustez recentemente no Brasil, é um trabalho contínuo de maturação, no qual não está presente em alguns países do globo. De 173 países analisados pelo Banco Mundial, em 2016, 46 não têm legislação específica sobre proteção da mulher contra violência doméstica. O cenário mudou em 25 anos, sendo que, de nenhum país que tinha leis a respeito, 118 passaram a ter. Outros países, contudo, não têm sequer uma legislação que ampare a mulher vítima de assédio ou violência, é, até mesmo, lícito que o marido aplique castigos corporais em sua esposa e controle a sua vida.
Atualmente, dois terços dos países (140) punem a violência doméstica. Porém, mais de 40 não o fazem. O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) calcula que, no mundo todo, 50% das mulheres assassinadas são vítimas dos cônjuges ou de homens da família. A Rússia, um país onde uma mulher é assassinada a cada 40 minutos, descriminalizou a violência de gênero. (CASTILLO, 2017)
De forma geral, as regiões do planeta que menos garantem os direitos das mulheres continuam sendo a África Subsaariana, a Ásia Meridional e o Oriente Médio. Na Europa, o continente que mais pune a violência de gênero, a Rússia se sobressai como o país menos seguro. Na União Europeia (UE), a Bulgária se destaca por não ter leis que criminalizem o estupro dentro do casamento e a Hungria,
por não punir o assédio sexual.
No caso do Brasil, há seis leis que protegem as mulheres contra violência física, psicológica, sexual e verbal: a Lei Maria da Penha (lei n.º 11.340, de agosto de 2006), com o objetivo de criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher; a Lei Carolina Dieckmann (lei n.º 12.737, sancionada em 2012), que protege mulheres contra invasões em ambientes cibernéticos (dispositivos e serviços); a Lei do Minuto Seguinte (lei 12.845, sancionada em 2013), que oferece algumas garantias a vítimas de violência sexual, como atendimento imediato pelo SUS; a Lei Joana Maranhão (lei 12.650, sancionada em 2015) alterou os prazos quanto à prescrição (prazo) contra abusos sexuais cometidos contra crianças e adolescentes, fazendo o prazo contar a partir da maioridade da vítima e passando a ser de 20 anos; a Lei do Feminicídio (lei 13.104, sancionada em 2015), que qualifica um crime de gênero, é um homicídio praticado contra a mulher por sua condição, sendo considerado crime hediondo (GOMES JR, 2020) e a lei 14.188, de 2021, que incluiu, recentemente, no Código Penal o crime de violência psicológica contra a mulher.
Em termos regionais, também há a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a violência contra a mulher - Convenção de Belém do Pará de 1994:
Artigo 4
Toda mulher tem direito ao reconhecimento, desfrute, exercício e proteção de todos os direitos humanos e liberdades consagrados em todos os instrumentos regionais e internacionais relativos aos direitos humanos. Estes direitos abrangem, entre outros:
e) direito a que se respeite a dignidade inerente à sua pessoa e a que se proteja sua família;
f) direito a igual proteção perante a lei e da lei;
g) direito a recurso simples e rápido perante tribunal competente que a proteja contra atos que violem seus direitos;
Artigo 2
Entende-se que a violência contra a mulher abrange a violência física, sexual e psicológica:
a) ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal, quer o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não a sua residência, incluindo-se, entre outras formas, o estupro, maus-tratos e abuso sexual;
Artigo 13
l. Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada.
Apesar da evolução na legislação, especialmente a partir de casos que ocorreram e que ensejaram a proteção, ainda se falha muito na execução destas normas, além disso, a palavra da vítima é muito desacreditada no momento de realizar denúncias em razão do machismo estrutural que marca
a sociedade brasileira.
No que tange ao tema ora apresentado, a Convenção da Haia sobre Sequestro Internacional de Crianças de 1980, mesmo havendo um trabalho internacional no sentido de proteção da mulher, a violência contra a mulher não consta expressamente como exceção ao não retorno da criança para o antigo lar. Na verdade, apenas a violência contra a criança pode ser considerada para efeitos do não retorno. Salienta-se que a Convenção é um texto relativamente antigo e que, à época, não era um tema tão relevante quanto nos dias atuais.
Resta à casuística e à jurisprudência interpretar se este trata-se de um caso ou não de excetuar o retorno. Quando é judicialmente determinada a repatriação da criança, isto faz com que a mãe, vítima legítima de violência doméstica, tenha de retornar para o convívio com o agressor, o que a coloca em situação de plena vulnerabilidade.
É necessário, portanto, instruir as mulheres que estão no exterior de como podem denunciar que estão sofrendo violência doméstica e registrar os fatos de modo que possam fazer um retorno legal, autorizado e seguro para o seu país de origem. Por exemplo, talvez muitas poucas saibam que o número 180 funciona para denúncias de mulheres residentes no exterior em 13 países desde 2015.
Não se trata aqui de não reconhecer os direitos do genitor paterno na criação dos filhos e, tão menos, de reduzir a importância da convenção para evitar, ao longo de todos esses anos, a retenção ilícita de menores em local diverso de sua comunidade de residência habitual. Trata-se de operar justiça com a necessidade de regulamentação de um ponto que ainda está obscuro, deixado à casuística, e que tem ocasionado sofrimento a famílias inteiras. E, além disso, reconhecer que o mundo se modificou e existem outras circunstâncias que não estão amparadas pelo texto convencional firmado.
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