OS DESAFIOS DE SE TRABALHAR EM CASOS DA CONVENÇÃO DA HAIA DE 1980
- Blenda Lara
- 26 de out. de 2023
- 8 min de leitura
Atualizado: 28 de out. de 2023

Depois desses anos trabalhando com a Convenção da Haia de 1980, posso dizer que é um dos processos mais dolorosos que tenho de levar adiante. Doloroso para todas as partes envolvidas e, especialmente, para as crianças.
Conversemos, pois, sobre a tão falada Convenção da Haia de 1980 sobre o Sequestro Internacional de Crianças de 1980.
A Convenção trata-se de um drama particular que atinge lares desfeitos, lares estes que foram constituídos a partir de uma base plurinacional ou envolveram mais de uma fronteira estatal. Quando ocorre o término de um casamento, em bases nacionais já existem grandes dificuldades para lidar com os ônus dessa separação e diversas recorrências referentes à violência doméstica, vingança processual, alienação parental etc. Ainda, se torna mais delicado quando um dos cônjuges decide encerrar o vínculo conjugal e deixar o local de residência habitual.
O problema reside do fato de que nem sempre um ex-cônjuge, ou ex-companheiro, deseja negociar com o outro, abrir mão de ter a presença constante dos filhos. Agindo por impulso, e, na tentativa de se favorecer de alguma forma, acabam por retirar a(s) criança(s) sem autorização e terminando por criar um litígio internacional com sérias repercussões na vida dos envolvidos.
Em razão de casos emblemáticos ocorridos no passado e que, muitas das vezes, colocou países e suas respectivas diplomacias em choque, a sociedade internacional reuniu-se e regulamentou a matéria. A CH de 1980 visa proteger a criança e impedir que os laços afetivos dela com um dos genitores e com seu local de residência habitual (o que implica em outros familiares, amigos, escola e rede de apoio) sejam bruscamente rompidos por decisão unilateral de um dos pais. A Convenção trata a criança como indivíduo e preserva seus direitos, não permitindo que seus pais a considerem meros bens que podem levar com a bagagem.
Em 1980, o filme o “Resgate de Laureen Mahone” chamou a atenção para um drama recorrente e, até então, silencioso. Homens, inconformados com a perda da guarda de seus filhos(as), costumavam sequestrá-los(as) e aliená-los(as) do convívio da genitora materna. Nessa história, baseada em fatos reais, o ex-marido, Mohammed Ali Bayan, apanha a filha de 7 anos, Lauren Bayan, para uma visita de final de semana e desaparece. A mãe, Cathy Phelps Mahone, posteriormente, descobre que ele vendeu seus pertences e voltou para a Jordânia, sua terra natal.
Então, inicia-se uma saga: a mãe recorre ao consulado, à Corte Federal, às Nações Unidas, mas não consegue algo que pudesse facultar o retorno da criança. Apenas o pai é considerado foragido, ficando, portanto, com restrições para retornar aos EUA. O caso ocorre em um tempo de conflito no Oriente Médio, e uma ação mais incisiva na diplomacia para demandar o retorno poderia ser entendida como um ato inamistoso.
Aparentemente, como na maioria dos casos de abdução internacional, o genitor(a) abdutor(a) planeja a situação com antecedência. Isto ocorreu nesse caso, já que na Jordânia, após completar 7 anos, a guarda passa automaticamente para o pai. A criança, vítima de abdução, havia completado essa idade há pouco tempo de quando o caso ocorreu (segundo a produção cinematográfica), ou seja, o pai, sabendo que a filha completou essa idade, leva-a para um país no qual a sua guarda ficaria favorecida com o objetivo de ter o controle de sua criação, sem o consentimento da mãe.
Não obtendo ajuda para conseguir reaver sua filha, a genitora resolve, então, desfazer-se de seus bens para levantar dinheiro e contratar os serviços de um grupo antiterrorista especializado neste tipo de resgate. Ela contratou, por um valor entre 100 e 200 mil dólares, um grupo de ex-militares de um comando especial do Exército. Miraculosamente, a mãe consegue retirar a filha com segurança da Jordânia e recupera a sua guarda. Retornando aos EUA, permaneceu em localidade ignorada, por temer represálias do ex-marido ou uma nova tentativa de sequestro da criança.
Em 1991, outra produção baseada em fatos reais, Not Without My Daughter (Nunca sem minha filha), mostra a fuga da cidadã americana, Betty Mahmoody, e da sua filha, Mahtob, do Irã. Nesse caso, a esposa é convidada pelo marido a viajar para visitar a família dele em Teerã. O casal vai acompanhado da filha, Mahtob, para passar duas semanas de férias. Ao final desse tempo, o marido revela à esposa que foi despedido do seu emprego nos Estados Unidos, razão pela qual decidiu permanecer no Irã, onde ele teria demanda para o seu trabalho como médico devido à guerra do Irã – Iraque.
A relação do casal muda drasticamente, e a mulher passa a ser vítima de violência doméstica, sofre violência física e patrimonial (ele lhe retira seus cartões de crédito, dinheiro e passaporte), passando a viver em uma situação de cárcere privado.
Ao descobrir que no Irã as mulheres não têm direitos legais sobre os filhos e que ela e sua filha não podem deixar o país sem a autorização do marido, Betty decide planejar uma fuga e acaba conhecendo um senhor no mercado que costuma ajudar mulheres estrangeira em situação semelhante à dela. A partir de sua ajuda, ela consegue escapar pelas montanhas do norte do Irã e chegar à Turquia.
Estas duas produções esboçam a existência da elaboração desse compromisso internacional. À época nos EUA, eram quase 2.500 casos de abdução internacional e, em muitos casos, os pais ou mães que eram deixados para trás nunca mais viam seus filhos. Hoje, com a facilitação de circulação entre fronteiras e o aumento de pessoas entre diferentes nacionalidades, os casos são, ainda, em números mais expressivos.
Nestas situações mais antigas, o cônjuge valia-se da cultura e de regramento locais, além da própria despesa que envolviam as ações judiciais para forçar o retorno, como forma de conseguir manter a guarda sobre os filhos. A atitude do genitor abdutor é vedada pela lei, porque ela impossibilita ao genitor, que é deixado no país de origem, de lutar pela guarda de seus filhos em condição de igualdade.
Em tal contexto, pode-se falar de inúmeros conflitos causados por genitores que, visando exercer com exclusividade o direito de guarda e tentando suprimir a influência do outro genitor sobre os filhos, transferem os filhos para outros países que não o de sua residência habitual. É comum que os genitores se confundam e, em razão da nacionalidade originária da criança, acreditam que podem levar o filho consigo, sem que isso lhe traga algum problema. Todavia, é preciso ressaltar que o elemento de conexão que importa para efeitos de aplicação da convenção é o local de residência habitual da criança.
Nestes casos, muitas das vezes, distorcendo fatos ou fazendo falsas alegações para forçar a aplicação das exceções previstas nos artigos 13 e 20, da Convenção da Haia, o genitor abdutor acabava por obter decisões judiciais locais que conferiam aparência legal às situações ilícitas criadas, sepultando de forma permanente os direitos do genitor que foi deixado. Por esta razão, tantos relatos de tentativas próprias de recuperação das crianças por parte dos genitores são deixados para trás.
Assim, a falta de efetividade da justiça, aliada ao princípio do interesse superior da criança, serviu para que a Conferência da Haia de Direito Internacional Privado estabelecesse a Convenção. A Conferência é uma organização internacional centenária que tem como objetivo a uniformização de regras de direito interno de diversos países sobre matérias, tais como cooperação judicial ou direito de família.
Após quatro anos de debates, concluiu-se, em 25 de outubro de 1980, na cidade da Haia, na Holanda, a Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças. A Convenção da Haia de 1980 entrou em vigor internacionalmente em 1º de dezembro de 1983, mas o Brasil apenas ratificou a Convenção vinte anos depois. O depósito do instrumento de adesão ocorreu em 19 de outubro de 1999 e o decreto presidencial de promulgação, n.º 3.413, em de 14 de abril de 2000.
Em linhas gerais, a Convenção tem por objetivo assegurar o retorno imediato de crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado Contratante, ou nele retidas indevidamente, bem como fazer respeitar de maneira efetiva nos outros Estados Contratantes os direitos de guarda e de visita existentes num Estado contratante.
Para que um pedido seja adequadamente tramitado entre as autoridades dos países envolvidos é preciso que a retirada da criança, ou a sua retenção em outro país, tenha violado o direito (unilateral ou conjunto) de guarda e de visitas, assim como os cuidados com a pessoa da criança e/ou o direito do requerente de decidir sobre o local de residência da criança. A análise do pedido, portanto, deve basear-se na lei do país requerente.
O conceito de guarda, na Convenção, é um conceito autônomo, que não se confunde com a definição do termo na legislação brasileira e inclui tanto o exercício dos cuidados com a pessoa da criança quanto o direito de decidir sobre seu local de residência habitual (ACAF, s/d).
A Convenção previu um procedimento célere para o retorno imediato da(s) criança(s): o processo judicial deve durar apenas seis semanas. Para que o juiz consiga estender esse prazo, deve justificar o motivo do adiamento. O processo, que atualmente recebe o nome de repatriação, havendo surgido como uma busca e apreensão de caráter sumário em que a regra é o retorno imediato, há apenas exceções muito específicas para que tal não ocorra.
Ressaltando que o pedido judicial tem de ser feito em até um ano da data da remoção/retenção da criança, pois, neste caso, presume-se que a criança está adaptada e que o retorno seria algo prejudicial à sua psique. Quase sempre as ações são ajuizadas nas esferas federais dos Estados-Contratantes.
No Brasil, a ação de busca e apreensão corre na Justiça Federal, já que ela tem competência para decidir sobre causa fundada em tratado internacional (artigo 102, da Constituição Federal).
Uma das grandes inovações da convenção é exatamente a existência de Autoridades Centrais nos Estados Contratantes que centralizam e organizam a busca pelo menor abduzido. No Brasil, esta autoridade está vinculada ao Ministério da Justiça e possui competência exclusiva em matérias que envolvam o tema.
Carol S. Bruch advoga que a existência de autoridades centrais trouxe enormes benefícios para os genitores abandonados e para a consolidação da CH-80 no mundo, proporcionando uma gama de informações e apoio jurídico e logístico de forma a direcionar as energias e os recursos financeiros dos interessados durante a busca pelo retorno da criança. Narra, inclusive, a autora, a importância de um determinado pedido preventivo de informações de uma genitora abandonada em potencial à Autoridade Central Australiana, que, ao fim e ao cabo, foi o documento decisivo para que se comprovasse a não concordância dela – o principal argumento do genitor – com a mudança de seus filhos para a Austrália. No papel de requerente, a autoridade central pode contribuir com o genitor abandonado de diversas formas, desde aconselhá-lo sobre as possíveis dificuldades que poderá encontrar naquele país, até fornecer dados sobre como atuar junto às organizações internacionais que podem ajudar a localizar a criança e a produzir provas. (MEIRA, 2018)
A dificuldade de tradução do termo original, abduction, pode trazer para a interpretação em português de que o cônjuge estaria praticando ato um ilícito de caráter penal. Dada a dificuldade em relação à tradução do termo abduction, do título em inglês, na versão oficial brasileira traduziu-se o termo por “sequestro”. Assim, compreende-se que, embora a Convenção utilize o termo sequestro, esta visa à regulamentação da transferência ou retenção ilícita de um menor, relativa à sua guarda. (AMARAL et al., 2013)
A convenção, todavia, lida apenas com os aspectos civis do fenômeno, mas as legislações internas de cada um dos países e as autoridades envolvidas costumam enquadrar esses genitores no crime de sequestro e/ou na desobediência de ordem judicial, quando a pessoa acusada ignora a ordem de retorno.
Assim sendo, trata-se de uma matéria que pede a atenção dos cônjuges que desejam estabelecer residência em outro país e querem legalmente levar a criança consigo. Deve-se obter a concordância do outro genitor, ainda que este cônjuge tenha a guarda unilateral. Caso não consiga, tal consentimento pode ser suprido pela via judicial com um pedido de autorização para mudança de residência.
Fontes
NASCIMENTO, Blenda Lara F do. A Convenção da Haia de 1980 sobre sequestro internacional de crianças e a sua aplicação em face de alegações de violência doméstica. Disponível em: https://oabdf.org.br/noticias/representatividade-comissao-da-mulher-advogada-da-oab-df-lanca-e-book-exclusivamente-com-autoras-mulheres/























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